Em
1978, Stephen King lançou um livro chamado A Dança da Morte (The
Santd, no original). Entre os fãs mais ardorosos do autor,
principalmente aqueles não entusiastas da série A Torre Negra (saga
épica de King, voltada para a fantasia e não para o terror), A
Dança da Morte é considerada a grande obra Kinguiana. A história
segue uma série de personagens que sobrevivem a uma catástrofe
provocada por um vírus feito pelo homem que é liberado no ar
acidentalmente. Com o colapso da sociedade, estes sobreviventes são
obrigados a viver do que restou da civilização – o que foi pouco
mais do que nada.
No
livro Sobre a Escrita, uma autobiografia misturada com manual de
escrita, King diz que uma das coisas que impulsionou A Dança da
Morte foi a crise de energia que assolou a América do Norte. Além
disso, o país via, nos anos 70, os primeiros ensaios daquilo que
seria o ciclo de notícias de 24 horas, com canais de televisão
mostrando atrocidades do mundo inteiro em tempo real. Os americanos
puderam ver, então, os massacres em Uganda e a fome que assolava o
mundo. Fora do planeta, ambientalistas chamavam a atenção para o
buraco na camada de ozônio. Em outras palavras, a sociedade
norte-americana da época começou a ver os limites de sua própria
existência.
O
que King fez, como romancista identificado com o terror que é, foi
extrapolar as notícias da TV e de fato destruir uma sociedade que,
para telespectadores, já estava condenada ao fim breve de qualquer
maneira. Segundo o autor, imaginar um mundo sem tecnologia foi uma
certa diversão porque foi uma chance de imaginar um mundo sem fome,
sem superpopulação, sem buracos na camada de ozônio ou massacres
em Uganda. Não só isto, mas este “novo mundo” ainda tinha a
chance de se reerguer sobre valores que não foram os mesmos que o
levaram à destruição.
O
ser humano é adaptável. Tal característica é coloca à prova (e
vence) todos os dias. O que leva a crer que a vida sem tecnologia
hoje seria diferente, claro, mas possível. Interessante pensar que
programas de TV, especialmente aqueles que querem se encaixar na
categoria de “reality shows”, constantemente produzem material
audiovisual que simula esta situação de dissociação com o “mundo
atual”. Programas como Survivor, Pelados e Largados, Desafio em
Dose Dupla, são apenas alguns dos exemplos de shows que tratam
exatamente deste assunto. Num movimento de extremo oposto –
tipicamente pós-moderno – cresce o interesse do público pelo polo
contrário ao que é divulgado como o usual. Assim, se a experiência
do viver hoje é tecnóloga, informatizada, instantânea, reproduzem
na televisão versões romantizada daquilo que seria a vida no lado
oposto ao desta corrente, explorando momentos de vida de
participantes desconectados do mundo prático contemporâneo. É
natural que estas versões televisivas de sobrevivência não sirvam
como microcosmos do que seria a sociedade sem tecnologia, uma vez
que, como dito, trabalham com extremos. Mas servem sim para mostrar a
nossa adaptabilidade e para provar que a sociedade sobreviveria sem
tecnologia com uma capacidade manual modesta e algum conhecimento
prático.
Isto
em termos práticos, porque em termos relacionais, a humanidade sem
tecnologia teria que se reconstruir de um tecido muito mais íntimo.
Porque as inovações tecnológicas alteraram a própria fibra da
qual a sociedade é construída. Além das redes sociais terem dado,
como disse Umberto Eco,
Espaço à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só
no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à
coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto
agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio
Nobel. (Eco, 2015)1.
Elas
também alteraram a maneira interpessoal de se relacionar. Mas,
lembremos, ao contrário do que Mark Zuckerberg gosta de pensar, a
Internet está muito além do Facebook e de suas redes sociais. As
relações de trabalho, a produção e divulgação de arte, de
pesquisas etc. É no seio social que a Internet se impôs como o fato
mais transformador da história humana. Inovações como o avião, o
elevador, o telefone ou mesmo o computador, por mais importantes e
relevantes que tenham sido, não transferiram para fora do cérebro
humano um repositório de informações que rivaliza com a quantidade
de conhecimento que o próprio homem já conseguiu levantar ao longo
de sua história.
É
claro que o avião encurtou distâncias, que o elevador permitiu a
construção de arranha-céus que modificaram a maneira de se pensar
e praticar o urbanismo, que o telefone permitiu a comunicação para
além das limitações simplórias do telégrafo, mas nenhuma destas
invenções reprogramou tão completamente a maneira de agir em
sociedade.
Uma
reprogramação tão absoluta que não é estranho questionar se
conseguiríamos sobreviver sem ela.
1.
Bibliografia:
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/02/5-frases-memoraveis-do-escritor-umberto-eco-sobre-redes-sociais-e-tecnologia.html